17 maio 2009

Ferreira de Castro

"Nas noites de luar, quando o grande balão de oiro surge na lomba das montanhas, o vale enche-se de magia, dum sortilégio que paira desde os píncaros longínquos às águas sussurrantes do Caima. De manhã é o milagre, todos os dias há um milagre de luz sobre a terra quando o sol nasce em Vale de Cambra."

Sobre Vale de Cambra

“Trepava a água às viçosas plantações, depenando toda a terra que braços fortes tinham roçado para a obra da criação. E os mais desprevenidos viam até ir na corrente, desfeito com vigor daninho, o lar que haviam fundado ao alcance de intrusa. Era a desolação e era a pobreza que a grande toalha impura trazia nas suas dobras”.

A Selva




«Eu nasci a 24 de Maio de 1898. Mas, quando penso na minha idade, sinto-me sempre mais novo, sinto-me sempre beneficiado por quatro anos a menos. São quatro anos iguais a um noite escuríssima, onde não é possível acender luz alguma. Não os viveu o meu espírito. Não estão na minha memória. Não me pertencem. Para a minha realidade espiritual eu tenho 28 anos. É que em 1902 que começo a povoar o museu da minha vida, a decorar a galeria das minhas recordações. Foi numa tarde de sol – tarde de luz forte que eu vejo ainda – que dei início ao longo da casa onde nasci. A diabrura que pratiquei, desvaneceu-se no esquecimento, mas lembro-me, sim, que minha mãe, saindo do quinteiro e agarrando-me por um braço, castigou-me. Passava na estrada, enxada ao ombro, um homem alto, bigodes retorcidos festonando as faces trigueiras. Deteve-se, sorriu e disse:
- “Assim é que é, senhora Mariquinhas! Nessa idade é que eles se ensinam”.
Odiei aquele homem. Por que, em vez de me proteger com a sua força, ele estimulava minha mãe a castigar-me ainda mais? Por que era ele tão mau e por que sorria vendo-me sofrer, se eu não nunca lhe tinha feitio mal?
É esta a minha recordação. E foram de ódio e de sofrimento as primeiras sensações que a vida me deu. Eu tinha quatro anos e meio»

«Quando vinha com minha mãe ao mercado de Oliveira de Azeméis, passava por uma meia porta e via lá uma máquina a trabalhar, a tirar o jornal; aquilo parecia-me uma obra de Deus e o meu sonho todo, tinha 9 anos, seria escrever umas coisas para aquele jornal, para a «Opinião». Se alguém podia ter feito a felicidade de uma criança, seria aquele jornal.»

« ...Na minha aldeia fiz a instrução primária; no seringal, lia todos os livros que conseguia encontrar, o que estava muito longe de ser suficiente. Eu sou autodidacta. Não posso mesmo dizer que estudei no que isto significa de disciplina, pois tudo o que aprendi, desde as línguas que me permitissem conhecer o espírito dos outros povos, até à Sociologia e a Filosofia, que tanto me interessavam, o fiz sem esforço... e graças a isso, todas as minhas incursões no mundo do conhecimento humano foram agradáveis em vez de penosas»
Ferreira de Castro passou cerca de quatro anos em plena selva e só não foi cortar borracha por causa da sua idade, ficando empregado no armazém do “aviador”... Em plena selva amazónica, escreveu as primeiras tentativas literárias ... Aos 14 anos de idade, sua vocação literária levava-o a escrever a sua primeira novela, intitulada “Criminoso por Ambição”...




«José Maria Ferreira de Castro nasceu a 24 de Maio de 1898, no lugar de Salgueiros, freguesia de Ossela, concelho de Oliveira de Azeméis. De origens humildes, órfão de pai, a sua educação foi rude e exigente, influenciando a sua personalidade triste e amargurada. Em 1904 entra para a escola primária de Ossela, que lhe confere as únicas habilitações que possui, motivo do qual se orgulhava. Interessa-se desde muito cedo pela leitura, adquirindo todas as obras de cordel que a sua parca condição financeira podia suportar.
Passa os primeiros anos da sua vida em intensa comunhão com a natureza do vale banhado pelo rio Caima, em Ossela.

Aos 12 anos de idade emigra para o Brasil, passando parte da sua adolescência, de início no Seringal Paraíso, no interior da Amazónia, e posteriormente, em Belém do Pará, onde trabalhou arduamente para conseguir subsistir.

Em 1916 consegue publicar o romance "Criminoso por Ambição", que distribui porta a porta. A partir daí, começa a colaborar com alguns jornais locais, estabelecendo, a pouco e pouco, relações com pessoas que lhe abrem o caminho na vida jornalística. Produz e publica, por esta altura, algumas novelas, que, apesar de renegadas mais tarde, lhe começam a conferir alguma notoriedade.
Contudo, só em 1928, com a publicação de Emigrantes, se inicia definitivamente a sua carreira literária, alcançando notória consagração em 1930, ano em que publica a Selva, a obra lusófona com mais traduções feitas.
Com este sucesso editorial, quer em Portugal, quer no estrangeiro, consegue, através da publicação de diversos e sucessivos êxitos literários, alimentar a auréola da notoriedade até falecer, em 1974, com 76 anos de idade. Mas, para além da notoriedade literária, a personalidade humanista de Ferreira de Castro, que tão bem alimentou a sua obra, constituiu uma referência cívica e moral na luta contra o regime ditatorial e em prol dos direitos humanos.»



«Nasce o homem e, se não dispõe de riqueza acumulada pelos seus maiores, fica a mais no Mundo. Entra na vida -- já se disse e é bem certo -- como as feras nos antigos circos -- para a luta! Luta para criar o seu lugar, luta contra os outros homens, luta pelas coisas mesquinhas e não pelas verdadeiramente nobres, por aquelas que contribuiriam para uma maior elevação humana. Para essas quase não há tempo de existência de cada um.»
[do «Pórtico»], Ferreira de Castro, Emigrantes


Emigrantes

" Preta e branca, preta e branca, o preto mui luzidio e muito níveo o branco, a pega, de cauda trémula, inquieta, saracoteava entre carumas e urgeiras, esconde aqui, surge ali, e por fim erguia voo até a copa alta do pinheiro, levando no bico ramo seco ou graveto.
O pinhal, todo de troncos grossos, casca áspera e gretada, adormecia austeramente, no diáfano silêncio da tarde primaveril. As suas pinhas dir-se-iam incopuladas ou corroídas pelo antídoto maltusianista, porque, cá em baixo, no solo castanho e acidentado, nenhum pinheiro infante erguia para o céu os bracitos verdes. Os caules nus, quasi negros, assimétricos, eram colunas dum templo bárbaro, em cuja cúpula transparente o sol ia tecendo prateada e fantasiosa malha. Por vezes, o tecido incorpóreo esfarrapava-se e descia, em fluidos caprichosos, até aos galhos, onde formava pulseiras, ou até ao chão, onde coagulava em jóias bizarras.
Ao fundo, cortando o declive, estendia-se a linha avermelhada dum valado, que cedia terreno e entrincheirava uma multidão cerrada de pinheiros adolescentes e mui viçosos - a prole que os velhos não quizeram cobrir com as suas asas seculares.
Á esquerda, para lá ainda da falda do outeiro, es … "

In "Os Emigrantes", capitulo "Primeira Parte"

A Selva

" Fato branco, engomado, luzido, do melhor H. J. que teciam as fábricas inglesas, o senhor Balbino, com um chapéu de palha a envolver-lhe em sombra metade do corpo alto e seco, entrou na "Flor da Amazónia" mais rabioso do que nunca.
Ter andado de Herodes para Pilatos, batendo todo o sertão do Ceará no recrutamento dos tabaréus receosos das febres amazonenses e tranquilos sobre o presentes, porque há anos não havia secas, e afinal, depois de tanto trabalho, de tantas palavras e canseiras fugirem-lhe nada menos de três! Que diria Juca Tristão, que o tinha por esperto e exemplar, quando ele lhe aparecesse com três homens a menos no rebanho que vinha pastoreando desde Fortaleza ?. E o Caetano, que ambicionara aquele passeio por conta do seringal e que assistira, roído de inveja, à sua partida ? Rir-se-iam dele… Quási dois contos atirados por água-abaixo !
No topo da escada, esbatendo-se na penumbra, surgiu o abdómen e logo o rosto avermelhado de Macedo, proprietário da "Flor da Amazónia": … "

In "A Selva", capitulo I

A Curva da Estrada

" Encontavam-se os três à mesa de jantar e o velho relógio de pêndula onze horas menos um quarto. Mercedes mostrava-se impaciente.
-Ramona! -gritou. -Então o café? E dirigindo-se ao irmão e ao sobrinho: -Esta mulher está cada vez pior !
Ouviam-se já os passos da criada no corredor e, logo que ela entrou na sala, Mercedes censurou-a:
-Por mais que eu repita, há-de ser sempre isto! A comida nunca está pronta a horas! Jantamos sempre tarde.
Ramona não se justificou, mas, pelos seus modos, Soriano compreendeu que ela resmungava por dentro. E parecia que o silêncio e a imobilidade de Paco apoiavam e aumentavam a razão de Mercedes.
-Em Espanha janta-se sempre tarde demais -disse. Soriano, em tom conciliador, assim que a criada saiu, depois de ter servido o café. … "

In "A Curva na Estrada" capitulo I


“Os Escritores”

“São os escritores os argonautas de todos os mares convulsos da alma e os aeronautas de todos os céus tranquilos da Beleza.
Eles são como espelhos onde a tragédia procura alinhar a sua cabeleira desgrenhada e as suas penas são como termómetros que marcam todos os graus da dôr humana. E adentro da Vida os escritores são maiores do que o mito de deus, poque êles não só desvendam a alma do Homem, como criam à margem da vida um homem mais perfeito do que aquele que a lenda afirma ter deus criado.”

In “A Epopeia do Trabalho”, “Os Escritores”


“SCENA XI”
“ANNA: (Esfarrapada, cabelos em desalinho, sentada numa das margens do rio, soluça) -... Tão bonita foi a minha vida. Moça, adorada por todos da freguesia, era uma rainha. Cazei-me e com o meu marido que é um homem trabalhador, honesto, vivia feliz. A felicidade ainda chegou a redobrar, quando vieram os nossos filhinhos. Mas... não há bem que sempre dure... Veio a Allemnha querendo, com as suas forças superiores, tomar-nos o que mais do que legitimamente era nosso. (Pausa). O meu Manuel foi um dos primeiros que chamaram para defender a patria.
Foi, e nós, que vivíamos do seu trabalho, começamos a passar miseria.
Vendi a minha honra para arrancar á fome o ultimo dos meus filhinhos, mas já era tarde; como o primeiro, morreu por não ter que comer.
O malvado, o miserável que, valendo-se do meu amor materno, saciou os seus ludibinosos desejos, abandonou-me. (Aperta, com as mãos, a cabeça). Eu bem sabia que elle faria isso. Vendi-me, mas foi para salvar o meu filho, mas... Deus não o quis na terra. (Pausa).
Para que me serve agora a vida, ó meu Deus?! Sem filhos, esses pedaços do meu coração; deshonrada, indigna de unir-me ao meu marido; exhausta; esfarrapada; esfomeada; cheia de remorsos... para que quero eu a vida? (Levanta-se. Ao longe ouve-se um canto melancólico que se aproxima). Ó Alemanha, Alemanha, sê maldita! (Atira-se ao rio. O palco fica um momento deserto. Depois aparecem correndo para a margem do rio, duas pastoras).

Alma Lusitana (Peça em 6 quadros e 2 actos)






Fontes:

Casa Museu Ferreira de Castro


Centro de Estudos Ferreira de Castro


Biblioteca Municipal Ferreira de Castro

Associação Prémio Nacional de Literatura Juvenil Ferreira de Castro

3 comentários:

Anônimo disse...

onde prova que era contra o regime ??

Marcelo Sousa disse...

Caro Anónimo, deixo aqui um trecho de Ferreira de Castro:

"Escrever assim é uma verdadeira tortura. Porque o mal não está apenas no que a Censura proíbe mas também no receio do que ela pode proibir.
Cada um de nós coloca, ao escrever, um censor imaginário sobre a mesa de trabalho - e essa invisível e incorpórea presença tira-nos toda a espontaneidade, obriga-nos a mascarar o nosso pensamento, quando não a abandoná-lo, sempre com aquela obsessão: Eles deixarão passar isto?"

onde prova que não era contra o regime?

Cpts

Anônimo disse...

a resposta não pode ser considerada completa pois o autor nasceu em 1898 , ora a censura já vem antes do regime a que se refere que julgo ser o estado-novo , censura que no nosso tempo continua ,a não ser que se pensa o que querem que pensemos , falta então dizer o ano do texto e onde se insere para perceber o seu contexto . Sou apreciador , comprador e leitor deste autor , gostava mesmo de aprofundar este assunto caso possa ajudar .