DIARIO DE CAMPANHA
Do Capitão X...
Do Capitão X...
Quarta-feira, 2 de Maio. Acordo pelas sete horas da manha. Sento-me sobre o meu leito de campanha, ponho em movimento as articulações e vejo, a um palmo do meu nariz, um prato onde uma talhada de prezunto fraternisa com um ovo estrellado. É o first-breakfast, que um tenente me estende. Devoro-o, bem como uma tapioca com assucar que sobrevem, regando-os com optima ceraveja. Uma chavena de chá, umas torradas, uma cachimbada de tabaco louro e o dia começa.
Cá fora da toca o sol está explendido. Passaritos cantam no terrapleno, soldados inglezes fazem a barba e nós oficiaes procedemos á nossa toilette. Nunca, nem mesmo nas trincheiras, um subdito de Sua Magestade britanica deixaria de se barbear todos os dias. Barbeiam-se de côr, sem espelho, com navalhas ageis e delgadas que passam como uma caricia sobre pelles maravilhosas de frescura e de côr.
D'alli a pouco partimos para a ronda da manhã. O mesmo itinerario da véspera, mas agora á luz clara do sol. Reconheço locaes entrevistos de noite, cruzo a cada passo os meus homens, que andam de parceria com os seus camaradas, fazendo a limpeza das trincheiras, esgotando agua á bomba, cavando regueiras, concertando parapeitos, isto emquanto outros nos postos de serviço entreteem o tempo limpando as armas. A desposição dos meus rapazes é excellente. Encontro-os a conversar no melhor portuguez com os inglezes que os escutam muitos sérios e como se entendem não sei. Ha frases que ouço a meúdo:
- « Quand guerre finish, bonne ! dizem os inglezes.
- « Yess! yess ! respondem os nossos.
- « Boches, pas bonnes...
- « Yess, yess, concordam os portuguezes.
De vez em quando um inglez toca no braço d'um soldado nosso e diz-lhe:
- « Come on. Promemade !
E lá vão os dois a uma fachina qualquer. Pergunto aos meus camaradas britanicos que impressão teem dos nossos soldados. Em cada posto peço ao capitão que consulte os seus sargentos e cabos. E, felizmente para mim e para honra de Portugal, a resposta é sempre a mesma.
- « Solids ! Bonnes !
Direi mesmo que para cavar e dar á bomba um portuguez valle bem dois inglezes. Quanto á sua serenidade sob fogo, basta que registe o espanto de um sargento inglez, que não podia perceber como, na ocasião do bombardeio, os nossos soldados ahiam dos abrigos para ir espreitar por cima dos parapeitos.
- « Para ver d'onde ellas vinham, meu capitão », explica-me um dos meus rapazes.
Um pouco de inconsciencia talvez, mas muita valentia afinal.
No fim da nossa ronda palmilhamos mais uns kilometros de trincheiras e chegamos ao posto de comando do batalhão.
Ahi, como sempre, o major e o comandante da brigada, que alli veiu de visita, me acolhem com toda a gentileza. Dentro da zona ingleza ha cerveja, cigarros e tabaco para cachimbo permanentes. O coronel e o major indagam do capitão o que se passou de noite e pedem noticias dos portuguezes. As companhias que me precederam deixaram boa impressão e a minha não desmerece da opinião formada. Visitamos o posto de socorro, primeiro escalão da assistência médica. Ha um major medico curiosissimo, fallando admiravelmente o francez e que passeiou o seu nariz exorbitante por Gallipolis e pelo Egypto antes de vir para França onde se sente felicissimo, sem querer largar o serviço das trincheiras.
Falla-se da duração da guerra. Acaba este anno, dizem todos.
O coronel diz-me que os portuguezes devem ser bons soldados. Respondo-lhe que a história da guerra peninsular, alem de outros documentos, é garantia das qualidades militares da nossa raça.
Shake hands fraternal e alliado, cerveja, cigarrada.
Regressamos, o capitão G. e eu ao nosso abrigo e já é hora de nova refeição. Continuo com um apetite admiravel. Um sargento informa-nos de que não há novidade. Apenas a arthilharia grossa continua o seu duêto. Sobre as nossas cabeças passam silvando granadas que, segundo consta, vão escavacar o acantonamento de onde saimos hontem. Um aeroplano inglez tenta voar sobre as linhas allemãs. Fazem-lhe uma barragem aerea e elle brinca, volta sobre as asas, sig-zagueia até voltar para trás. Faz calor e o captain senta-se á chineza sobre a cama e começa a escrever uma carta à que há-de ser M.me G., peut-être, apres la guerre...Tiro do meu saco La philosophie de Georges Courteline e leio algumas saborosas paginas. Pela porta aberta do abrigo, enquanto o sol escalda cá fora, passam soldados inglezes e portuguezes e busco adivinhar as preocupações d'estes. Vejo-os serenos, girando n'aquelle dedalo de caminhos enterrados como se estivessem n'uma parada de quartel, insensiveis ao perigo que nos ameaça a cada segundo. Chamo um e outro. Que tal? Uns estiveram de noite na primeira linha e acabam de ser rendidos. Contam a rir as suas impressões, enquanto os Tommies em volta os escutam interessados.
Ao cahir da tarde recomeça a musica. Os caminhos da rectaguarda e os da segunda linha principiam a levar a sua conta de metralha . E a pesca cega ao homem, dezenas de projecteis de artilharia e de balas de metralhadoras desperdiçadas para apanhar uma vida aqui, outra alem. E a Morte a entreter-se emquanto não chega a hora dos grandes golpes de fouce.
Entramos na segunda noite. O capitão G... já sabe a minha vida e eu já sei a d'elle. Era chemist antes da guerra e tenciona deixar o exercito mal ella acabe. Sabendo que ha de figurar n'uma cronica minha, pede que lhe envie o jornal. Quer alem d'isso no seu livro de guerra um autografo meu em francez: Escrevo este pensamento lapidar: - « Les boches sont des cochons et le capitaine G... est un frére. » Vamos dar outra volta
Ao atrevessarmos um caminho da B. Line, crepita ao longe uma metralhadora; sobre as nossas cabeças, na rama das arvores, silvam as balas. - «Pas bon!» - exclama o meu companheiro estugando o passo até á proxima trincheira cahiu cerca de um abrigo deserto. Tudo está a postos. Uma équipe que tenta ir collocar arame farpado tem de regressar e os meus portuguezes que a acompanham voltam furiosos por terem sido descobertos.
Vamo-nos deitar. De tempos a tempos um oficial ou um sargento de ronda vem fazer o seu relatório. No meio da noite acordo. Um rato dança o cake-walk sobre a minha barriga.
- «What is this? pergunta um capitão, que está acordado.
Explico-lhe de que se trata.
- « No confortable, diz-me elle na escuridão.
Readormeço, passados instantes.
PORTUGAL NA GUERRA - Revista Quinzenal Ilustrada nº 1 - 1 de Junho de 1917; Colunista Capitão X, que por motivos óbvios mantém sigilosa a sua identificação
Cá fora da toca o sol está explendido. Passaritos cantam no terrapleno, soldados inglezes fazem a barba e nós oficiaes procedemos á nossa toilette. Nunca, nem mesmo nas trincheiras, um subdito de Sua Magestade britanica deixaria de se barbear todos os dias. Barbeiam-se de côr, sem espelho, com navalhas ageis e delgadas que passam como uma caricia sobre pelles maravilhosas de frescura e de côr.
D'alli a pouco partimos para a ronda da manhã. O mesmo itinerario da véspera, mas agora á luz clara do sol. Reconheço locaes entrevistos de noite, cruzo a cada passo os meus homens, que andam de parceria com os seus camaradas, fazendo a limpeza das trincheiras, esgotando agua á bomba, cavando regueiras, concertando parapeitos, isto emquanto outros nos postos de serviço entreteem o tempo limpando as armas. A desposição dos meus rapazes é excellente. Encontro-os a conversar no melhor portuguez com os inglezes que os escutam muitos sérios e como se entendem não sei. Ha frases que ouço a meúdo:
- « Quand guerre finish, bonne ! dizem os inglezes.
- « Yess! yess ! respondem os nossos.
- « Boches, pas bonnes...
- « Yess, yess, concordam os portuguezes.
De vez em quando um inglez toca no braço d'um soldado nosso e diz-lhe:
- « Come on. Promemade !
E lá vão os dois a uma fachina qualquer. Pergunto aos meus camaradas britanicos que impressão teem dos nossos soldados. Em cada posto peço ao capitão que consulte os seus sargentos e cabos. E, felizmente para mim e para honra de Portugal, a resposta é sempre a mesma.
- « Solids ! Bonnes !
Direi mesmo que para cavar e dar á bomba um portuguez valle bem dois inglezes. Quanto á sua serenidade sob fogo, basta que registe o espanto de um sargento inglez, que não podia perceber como, na ocasião do bombardeio, os nossos soldados ahiam dos abrigos para ir espreitar por cima dos parapeitos.
- « Para ver d'onde ellas vinham, meu capitão », explica-me um dos meus rapazes.
Um pouco de inconsciencia talvez, mas muita valentia afinal.
No fim da nossa ronda palmilhamos mais uns kilometros de trincheiras e chegamos ao posto de comando do batalhão.
Ahi, como sempre, o major e o comandante da brigada, que alli veiu de visita, me acolhem com toda a gentileza. Dentro da zona ingleza ha cerveja, cigarros e tabaco para cachimbo permanentes. O coronel e o major indagam do capitão o que se passou de noite e pedem noticias dos portuguezes. As companhias que me precederam deixaram boa impressão e a minha não desmerece da opinião formada. Visitamos o posto de socorro, primeiro escalão da assistência médica. Ha um major medico curiosissimo, fallando admiravelmente o francez e que passeiou o seu nariz exorbitante por Gallipolis e pelo Egypto antes de vir para França onde se sente felicissimo, sem querer largar o serviço das trincheiras.
Falla-se da duração da guerra. Acaba este anno, dizem todos.
O coronel diz-me que os portuguezes devem ser bons soldados. Respondo-lhe que a história da guerra peninsular, alem de outros documentos, é garantia das qualidades militares da nossa raça.
Shake hands fraternal e alliado, cerveja, cigarrada.
Regressamos, o capitão G. e eu ao nosso abrigo e já é hora de nova refeição. Continuo com um apetite admiravel. Um sargento informa-nos de que não há novidade. Apenas a arthilharia grossa continua o seu duêto. Sobre as nossas cabeças passam silvando granadas que, segundo consta, vão escavacar o acantonamento de onde saimos hontem. Um aeroplano inglez tenta voar sobre as linhas allemãs. Fazem-lhe uma barragem aerea e elle brinca, volta sobre as asas, sig-zagueia até voltar para trás. Faz calor e o captain senta-se á chineza sobre a cama e começa a escrever uma carta à que há-de ser M.me G., peut-être, apres la guerre...Tiro do meu saco La philosophie de Georges Courteline e leio algumas saborosas paginas. Pela porta aberta do abrigo, enquanto o sol escalda cá fora, passam soldados inglezes e portuguezes e busco adivinhar as preocupações d'estes. Vejo-os serenos, girando n'aquelle dedalo de caminhos enterrados como se estivessem n'uma parada de quartel, insensiveis ao perigo que nos ameaça a cada segundo. Chamo um e outro. Que tal? Uns estiveram de noite na primeira linha e acabam de ser rendidos. Contam a rir as suas impressões, enquanto os Tommies em volta os escutam interessados.
Ao cahir da tarde recomeça a musica. Os caminhos da rectaguarda e os da segunda linha principiam a levar a sua conta de metralha . E a pesca cega ao homem, dezenas de projecteis de artilharia e de balas de metralhadoras desperdiçadas para apanhar uma vida aqui, outra alem. E a Morte a entreter-se emquanto não chega a hora dos grandes golpes de fouce.
Entramos na segunda noite. O capitão G... já sabe a minha vida e eu já sei a d'elle. Era chemist antes da guerra e tenciona deixar o exercito mal ella acabe. Sabendo que ha de figurar n'uma cronica minha, pede que lhe envie o jornal. Quer alem d'isso no seu livro de guerra um autografo meu em francez: Escrevo este pensamento lapidar: - « Les boches sont des cochons et le capitaine G... est un frére. » Vamos dar outra volta
Ao atrevessarmos um caminho da B. Line, crepita ao longe uma metralhadora; sobre as nossas cabeças, na rama das arvores, silvam as balas. - «Pas bon!» - exclama o meu companheiro estugando o passo até á proxima trincheira cahiu cerca de um abrigo deserto. Tudo está a postos. Uma équipe que tenta ir collocar arame farpado tem de regressar e os meus portuguezes que a acompanham voltam furiosos por terem sido descobertos.
Vamo-nos deitar. De tempos a tempos um oficial ou um sargento de ronda vem fazer o seu relatório. No meio da noite acordo. Um rato dança o cake-walk sobre a minha barriga.
- «What is this? pergunta um capitão, que está acordado.
Explico-lhe de que se trata.
- « No confortable, diz-me elle na escuridão.
Readormeço, passados instantes.
PORTUGAL NA GUERRA - Revista Quinzenal Ilustrada nº 1 - 1 de Junho de 1917; Colunista Capitão X, que por motivos óbvios mantém sigilosa a sua identificação
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