«O então brigadeiro António de Spínola, chegado à Guiné em 1968 como novo governador e comandante-chefe, decidiu avançar na estratégia de retirar as tropas do Leste do país, pouco povoado e, no seu entender, com pouco para defender. Para a retirada do quartel de Madina do Boé, uma tabanca, ou aldeia, com pouco mais de meia dúzia de cubatas, perto da fronteira com a Guiné-Conacri e constantemente sob ataque do PAIGC de Amílcar Cabral, foi desencadeada a operação "Mabecos Bravios" (cães selvagens).
Era a companhia de Caçadores 1790 que estava em retirada de Madina do Boé, e homens de outras companhias tinham vindo em apoio desta grande operação. Tropas, viaturas e todo o material de guerra percorreram os 22 quilómetros da picada entre Madina do Boé e Cheche, já na margem do rio.
Chegados ali, começaram a transpor os 200 metros de uma margem à outra em duas jangadas, na tarde de 5 de Fevereiro de 1969. Fizeram-no vezes sem conta, passando 28 viaturas pesadas, mais 100 toneladas de munições e equipamentos, três auto-metralhadoras Daimler e cerca de 500 homens. Ao início da manhã de 6 de Fevereiro, só restava na margem sul um grupo de homens: dois pelotões da companhia de apoio 2405, outros dois da que estava em retirada. Seriam 100 a 120 homens.
Entraram todos na mesma jangada, que passou a levar o dobro da sua capacidade de segurança. A meio do rio, a jangada adornou para um lado e atirou vários homens à água, balançou para o outro e cuspiu outros tantos. Carregados com a espingarda, a cartucheira à cintura, as botas, muitos afundaram-se como pregos no rio, pacífico na estação seca, de Novembro a Maio. Sem gritos, sem esbracejares. Naquele momento, a dimensão do acidente passou despercebida.
Só quando a jangada chegou à outra margem se percebeu a tragédia. Faltavam cerca de 50 homens (quase todos da metrópole). Este acontecimento ficou conhecido como o desastre de Cheche.
Quando a coluna em retirada tinha alcançado Cheche, antes da travessia do rio, os homens da companhia 1790 devem ter sentido alívio. Tinham aguentado 13 meses debaixo de fogo dos independentistas do PAIGC, que se escondia nas colinas em redor de Madina do Boé, e todos tinham escapado com vida. No fim dos 22 quilómetros de estrada de terra, que nos dias actuais, pedregosa, aos solavancos, consome hora e meia de viagem, Cheche significava o adeus a um pesadelo. Na época das chuvas, a estrada ficava intransitável, pelo que só de avião podia abastecer-se o quartel, agora pouco mais do que umas paredes em ruína.
Ainda hoje na aldeia de Cheche as casas são quase todas tradicionais e habitadas por famílias alargadas e não falta um campo de futebol, que se resume às balizas de paus num descampado. Entre os 300 habitantes, da etnia fula, encontram-se alguns que se viram no meio dos acontecimentos de 6 de Fevereiro de 1969. Alfa Umaro Djaló, muçulmano com três mulheres, nove filhos, seis netos, era soldado do Exército português em Madina do Boé. Na retirada, ia à frente a picar o terreno, não fosse haver minas, e na travessia do Corubal seguia na última jangada. Caiu à água. "Isso não vai apagar-se da memória. Morreram cinco africanos." Quando se senta com os filhos e os netos à noite, às vezes falam daquele momento: "Os netos reclamam por que não fui a Lisboa buscar os meus direitos. Não temos meios para ir." Os direitos ambicionados são uma pensão por ter combatido por Portugal.
Também Mamadu Bari, outro habitante de Cheche, conta como enfrentou o Corubal naquele dia. Tal como Alfa Umaro Djaló, foi atirado ao rio. "Faltou pouco para morrer. Despi a roupa e nadei." Ironia da vida: tornou-se depois jangadeiro de profissão na travessia do Corubal, mas há cerca de uma década, como atestam os calos, que vive do cultivo de arroz e milho.
Cerca de duas semanas depois do acidente, fuzileiros e mergulhadores da Marinha organizaram uma operação de recolha dos corpos, já em estado avançado de decomposição. Muitos tinham desaparecido. Na série de documentários A Guerra - Colonial, do Ultramar, de Libertação, de Joaquim Furtado, podem ver-se imagens aéreas de alguns corpos a boiar, recolhidas pelo então tenente (agora general) José Nico, piloto da Força Aérea. Joaquim Furtado relata que os corpos recuperados foram sepultados nas margens do rio, com as honras militares próprias. Antes, o jornalista mostrou imagens dos sobreviventes na jangada, também recolhidas por José Nico, e alguns dos companheiros nas margens a tentar ajudá-los.
Aquela jangada, um estrado de madeira assente em canoas e bidões de gasóleo vazios, era puxada por um pequeno barco com motor fora de borda. E agora, como se fará a travessia?
No dia em que Mussa Djaló caçava, a sede conduziu-o até ao Corubal e foi então que se deparou com a operação de recolha dos corpos. "Eu vi e não disse nada." O que diz ter visto foi um buraco perto da margem norte e um helicóptero a transportar os corpos até um descampado.
Há uns meses, Mussa Djaló e a Liga dos Combatentes cruzaram-se em Gabú. Mal souberam que a Liga andava no terreno, a palavra foi passada entre os antigos soldados guineenses das Forças Armadas portuguesas, que têm uma associação na Guiné. Eles aparecem e prestam informações, que podem ajudar a localizar os restos mortais de militares portugueses espalhados pela Guiné, para identificação e concentração no cemitério de Bissau (nas quatro intervenções anteriores, iniciadas em 2008, exumaram-se 50 combatentes da metrópole, nove dos quais foram trasladados para Portugal por vontade das famílias). Em Novembro do ano passado, Mussa Djaló levou o general Fernando Aguda, vice-presidente da Liga, e os tenentes-coronéis Álvaro Diogo e Carlos Correia, da mesma instituição, até ao local onde afirma ter visto a vala em Fevereiro de 1969.
Com eles ia o geofísico Hélder Tareco, da Universidade de Aveiro, que entrou em acção com a sua máquina de prospecção do subsolo. Precisamente no sítio indicado por Mussa Djaló, o geo-radar de Hélder Tareco sugeria uma diferença de densidade no solo, compatível com terra remexida e a presença de ossos. Portanto, os testemunhos locais e a prospecção geofísica coincidiam: ali deveriam estar sepultados alguns dos náufragos do desastre de Cheche. As coordenadas geográficas referidas num relatório da Marinha, consultado pela Liga, apontavam igualmente para aquela zona.
Quatro décadas depois, continua a existir uma jangada em frente a Cheche. É agora moderna, tem motor próprio e serve para a travessia de carros apenas. O resto, pessoas, bicicletas, motas, vai de piroga, e há várias. Imperturbável, o Corubal é tranquilo nesta época do ano, a mesma do acidente, e a água, um tanto esverdeada, é ladeada por margens íngremes cobertas por árvores e vegetação densa. Ao sítio da travessia, com Cheche do lado de lá, chega-se por uma estrada larga, depois de uma sucessão de tabancas na berma de um caminho de terra, ponto de encontro de quem está à pesca, de quem lava a roupa e a estende no chão, de quem toma banho ou de quem simplesmente passa por ali.»
Era a companhia de Caçadores 1790 que estava em retirada de Madina do Boé, e homens de outras companhias tinham vindo em apoio desta grande operação. Tropas, viaturas e todo o material de guerra percorreram os 22 quilómetros da picada entre Madina do Boé e Cheche, já na margem do rio.
Chegados ali, começaram a transpor os 200 metros de uma margem à outra em duas jangadas, na tarde de 5 de Fevereiro de 1969. Fizeram-no vezes sem conta, passando 28 viaturas pesadas, mais 100 toneladas de munições e equipamentos, três auto-metralhadoras Daimler e cerca de 500 homens. Ao início da manhã de 6 de Fevereiro, só restava na margem sul um grupo de homens: dois pelotões da companhia de apoio 2405, outros dois da que estava em retirada. Seriam 100 a 120 homens.
Entraram todos na mesma jangada, que passou a levar o dobro da sua capacidade de segurança. A meio do rio, a jangada adornou para um lado e atirou vários homens à água, balançou para o outro e cuspiu outros tantos. Carregados com a espingarda, a cartucheira à cintura, as botas, muitos afundaram-se como pregos no rio, pacífico na estação seca, de Novembro a Maio. Sem gritos, sem esbracejares. Naquele momento, a dimensão do acidente passou despercebida.
Só quando a jangada chegou à outra margem se percebeu a tragédia. Faltavam cerca de 50 homens (quase todos da metrópole). Este acontecimento ficou conhecido como o desastre de Cheche.
Quando a coluna em retirada tinha alcançado Cheche, antes da travessia do rio, os homens da companhia 1790 devem ter sentido alívio. Tinham aguentado 13 meses debaixo de fogo dos independentistas do PAIGC, que se escondia nas colinas em redor de Madina do Boé, e todos tinham escapado com vida. No fim dos 22 quilómetros de estrada de terra, que nos dias actuais, pedregosa, aos solavancos, consome hora e meia de viagem, Cheche significava o adeus a um pesadelo. Na época das chuvas, a estrada ficava intransitável, pelo que só de avião podia abastecer-se o quartel, agora pouco mais do que umas paredes em ruína.
Ainda hoje na aldeia de Cheche as casas são quase todas tradicionais e habitadas por famílias alargadas e não falta um campo de futebol, que se resume às balizas de paus num descampado. Entre os 300 habitantes, da etnia fula, encontram-se alguns que se viram no meio dos acontecimentos de 6 de Fevereiro de 1969. Alfa Umaro Djaló, muçulmano com três mulheres, nove filhos, seis netos, era soldado do Exército português em Madina do Boé. Na retirada, ia à frente a picar o terreno, não fosse haver minas, e na travessia do Corubal seguia na última jangada. Caiu à água. "Isso não vai apagar-se da memória. Morreram cinco africanos." Quando se senta com os filhos e os netos à noite, às vezes falam daquele momento: "Os netos reclamam por que não fui a Lisboa buscar os meus direitos. Não temos meios para ir." Os direitos ambicionados são uma pensão por ter combatido por Portugal.
Também Mamadu Bari, outro habitante de Cheche, conta como enfrentou o Corubal naquele dia. Tal como Alfa Umaro Djaló, foi atirado ao rio. "Faltou pouco para morrer. Despi a roupa e nadei." Ironia da vida: tornou-se depois jangadeiro de profissão na travessia do Corubal, mas há cerca de uma década, como atestam os calos, que vive do cultivo de arroz e milho.
Cerca de duas semanas depois do acidente, fuzileiros e mergulhadores da Marinha organizaram uma operação de recolha dos corpos, já em estado avançado de decomposição. Muitos tinham desaparecido. Na série de documentários A Guerra - Colonial, do Ultramar, de Libertação, de Joaquim Furtado, podem ver-se imagens aéreas de alguns corpos a boiar, recolhidas pelo então tenente (agora general) José Nico, piloto da Força Aérea. Joaquim Furtado relata que os corpos recuperados foram sepultados nas margens do rio, com as honras militares próprias. Antes, o jornalista mostrou imagens dos sobreviventes na jangada, também recolhidas por José Nico, e alguns dos companheiros nas margens a tentar ajudá-los.
Aquela jangada, um estrado de madeira assente em canoas e bidões de gasóleo vazios, era puxada por um pequeno barco com motor fora de borda. E agora, como se fará a travessia?
No dia em que Mussa Djaló caçava, a sede conduziu-o até ao Corubal e foi então que se deparou com a operação de recolha dos corpos. "Eu vi e não disse nada." O que diz ter visto foi um buraco perto da margem norte e um helicóptero a transportar os corpos até um descampado.
Há uns meses, Mussa Djaló e a Liga dos Combatentes cruzaram-se em Gabú. Mal souberam que a Liga andava no terreno, a palavra foi passada entre os antigos soldados guineenses das Forças Armadas portuguesas, que têm uma associação na Guiné. Eles aparecem e prestam informações, que podem ajudar a localizar os restos mortais de militares portugueses espalhados pela Guiné, para identificação e concentração no cemitério de Bissau (nas quatro intervenções anteriores, iniciadas em 2008, exumaram-se 50 combatentes da metrópole, nove dos quais foram trasladados para Portugal por vontade das famílias). Em Novembro do ano passado, Mussa Djaló levou o general Fernando Aguda, vice-presidente da Liga, e os tenentes-coronéis Álvaro Diogo e Carlos Correia, da mesma instituição, até ao local onde afirma ter visto a vala em Fevereiro de 1969.
Com eles ia o geofísico Hélder Tareco, da Universidade de Aveiro, que entrou em acção com a sua máquina de prospecção do subsolo. Precisamente no sítio indicado por Mussa Djaló, o geo-radar de Hélder Tareco sugeria uma diferença de densidade no solo, compatível com terra remexida e a presença de ossos. Portanto, os testemunhos locais e a prospecção geofísica coincidiam: ali deveriam estar sepultados alguns dos náufragos do desastre de Cheche. As coordenadas geográficas referidas num relatório da Marinha, consultado pela Liga, apontavam igualmente para aquela zona.
Quatro décadas depois, continua a existir uma jangada em frente a Cheche. É agora moderna, tem motor próprio e serve para a travessia de carros apenas. O resto, pessoas, bicicletas, motas, vai de piroga, e há várias. Imperturbável, o Corubal é tranquilo nesta época do ano, a mesma do acidente, e a água, um tanto esverdeada, é ladeada por margens íngremes cobertas por árvores e vegetação densa. Ao sítio da travessia, com Cheche do lado de lá, chega-se por uma estrada larga, depois de uma sucessão de tabancas na berma de um caminho de terra, ponto de encontro de quem está à pesca, de quem lava a roupa e a estende no chão, de quem toma banho ou de quem simplesmente passa por ali.»
In:
Público - A última jangada no rio CorubalOs mortos de Cheche